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domingo, 23 de julho de 2017

Mediação de Conflitos em Contexto Escolar


O conceito de conflito apresenta diferentes perspetivas que têm evoluído ao longo do tempo. Tradicionalmente era considerado como uma situação disfuncional que comportava efeitos nocivos para os seus intervenientes, presentemente é compreendido como essencial para o desenvolvimento pessoal e social dos alunos.  

A identificação e análise das suas principais causas e efeitos é de extrema importância para a adoção de estratégias eficazes para a sua dissipação, enquanto causa de indisciplina e violência.  

O desenvolvimento de um conjunto de competências nos alunos, por meio da Mediação entre Pares, poderá promover a resolução de conflitos, de uma forma construtiva, em benefício de toda a comunidade escolar, e em específico nos alunos envolvidos.  

É com frequência que presenciamos, por meio da comunicação social, a notícias que relatam episódios de indisciplina, discriminação e violência, dentro e fora dos portões das escolas, entre as quais têm sido destacadas:  

“Diretores e pais preocupados com violência nas escolas. Em 2016 foram contabilizadas mais de 100 agressões contra professores. Foram ainda apreendidas 17 armas a alunos dentro das escolas.” (Rádio Comercial, 11-04-2017).
“Aspeto físico é uma das principais causas das agressões nas escolas” (Sic Notícias, 31-03-2017).  

O Professor Adelino Calado, diretor do Agrupamento de Escolas de Carcavelos, refere que "A escola não está preparada para gerir conflitos, mas tem que os gerir" (Sic Notícias, 08-02-2017). 
  
Tal como refere o professor Adelino Carvalho, na entrevista que concedeu à SIC Notícias, em 08 de Fevereiro de 2017, atualmente a educação já não vem de casa e o ensino da escola, uma vez que os pais já não dispõem de tempo para dedicar aos seus filhos, competindo, deste modo, à escola desempenhar o papel dos pais.  
  
A escola é considerada como uma organização educativa que tem como principais funções a instrução e a socialização.  
  
No domínio da instrução, a transmissão do conhecimento básico, como a leitura, a escrita e o cálculo, assim como de um conhecimento mais avançado, como a matemática, as ciências experimentais e as tecnologias de informação e comunicação, essenciais para a preparação e integração dos alunos no mercado de trabalho.  

No campo da socialização, a educação para a democracia, designadamente na transmissão de um conjunto de princípios e valores, considerados como socialmente válidos que capacitem os alunos como cidadãos ativos e participativos na sociedade em que estão inseridos.  

Neste sentido, a escola representa um contexto privilegiado para a resolução de conflitos, através da sua mediação, dado que se trata de um espaço onde os alunos aprendem um conjunto de Saberes, como o Aprender a Conhecer, Aprender a Fazer, Aprender a Viver juntos e Aprender a Ser e onde se relacionam com os seus pares e passam uma parte significativa do seu tempo.  

Como já referido, o termo conflito apresenta diversas perspetivas e definições, por este motivo é caraterizado como um conceito nómada e polissémico, uma vez que é usado em diferentes contextos e apresenta diferentes significações (Costa, 2003).  

Waller (1932), citado por Costa (2003), defende que o conflito está bem presente na relação pedagógica, ainda que nem sempre seja imediatamente visível. A sua definição de conflito é entendida como “um processo construtivo, e cria tanto como destrói. E o conflito unifica tanto como divide; ele é um dos principais fatores de coesão. As nossas relações mais significativas são muitas vezes caracterizadas pela cooperação antagónica. O conflito preserva relações que doutra forma seriam intoleráveis. O conflito, além disso, é um meio para a paz. O conflito é parte essencial da dialética do desenvolvimento pessoal. Pode argumentar-se que o conflito nas escolas é a característica da vida escolar que melhor prepara os alunos para a vida fora da escola. O que nós precisamos nas escolas não é de suprimir o conflito, mas de estabelecer uma forma mais benéfica de conflito”.   

Uma outra definição de conflito é defendida por Neves & Ferreira (2001), citado por Costa (2003), que o considera “como o processo de tomar consciência da divergência existente entre as partes, traduzida em algum grau de oposição ou incompatibilidade entre os objetivos das partes, ou da ameaça dos interesses de uma das partes”.   

Hoje em dia, o conflito está bastante presente nas organizações escolares, nomeadamente, entre os alunos, e manifesta-se através de várias formas como a oposição, incompatibilidade e o desacordo, que podem conduzir a situações de indisciplina, discriminação e violência. Não obstante, o conflito também pode ocorrer entre a comunidade escolar, especificamente entre:   
  
       Alunos e funcionários;  
       Alunos e órgãos de gestão;  
       Professores e encarregados de educação;  
       Orgãos da escola e professores, considerados individualmente ou em grupos;  
       Escola e instituições da comunidade;  
       Escola e/ou professores com a administração.  
  
Grave-Resendes (2004), defende que o conflito pode ser um intrapessoal, entre nós próprios, interpessoal, entre dois indivíduos, intergrupal, entre dois ou mais grupos que são maioritariamente os tipos de conflitos existentes nas escolas e intragrupal, dentro do mesmo grupo.  
  
Uma das principais causas de conflito está relacionada com o poder que os professores exercem sobre os alunos. Afonso (1991), citado por Costa (2003), define poder como “a probabilidade de um ator impor a própria vontade, dentro de uma relação social, ainda que contra toda a resistência e qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade”.   
  
Para além da autoridade legal e do saber académico e pedagógico, o poder dos professores é assente nas seguintes tipologias (Costa, 2003):  

   Poder coercitivo - aplicação ou ameaça de aplicação de sanções sociais (Rocha &  Fernandes, 2008);  

     Poder de recompensa - distribuição de recompensas simbólicas: utilização de estímulos positivos pelo uso sutil da linguagem e de símbolos (Ribeiro & Bregunci, 1984, citado por Rocha & Fernandes, 2008);  

     Poder normativo - recurso a normas (morais, religiosas, jurídicas, profissionais, valores e ideologias), Formosinho (1980), citado por Rocha & Fernandes (2008);  

     Poder de especialista - reconhecimento e valorização dos conhecimentos aprofundados de alguém num determinado domínio (Ribeiro & Bregunci, 1984, citado por Rocha & Fernandes, 2008);  

    Poder referencial ou pessoal - ligado às características pessoais (Ribeiro & Bregunci, 1984, citado por Rocha & Fernandes, 2008).  
  
Os alunos, apesar de se encontrarem numa situação de dominação, não são destituídos do poder, uma vez que a sua principal fonte de poder é o grupo (Afonso, 1991, citado por Costa, 2003) que pode ser utilizado de diferentes formas, como modo de resistência, seja pontual ou sistemática (Costa, 2003).  
  
Os encarregados de educação podem, igualmente, representar um grandioso meio de resistência, sendo a resistência direta utilizada em relação ao poder exercido pelos professores e a resistência indireta, utilizada como o apoio que prestam à posição dos filhos. Este poder que é conferido aos alunos está na base de muitos conflitos (Costa, 2003).    
  
Costa (2003), refere que uma outra causa do conflito diz respeito à “relação que os professores estabelecem entre si, devido ao choque de perspetivas educacionais e modos de participação diferenciados, de interesses e objetivos muitas vezes divergentes” como consequência dos novos desafios a que estão sujeitos, como a transformação da escola tradicional numa escola democrática, a materialização do princípio da descentralização, a responsabilização e uma escola cada vez mais exposta a poderes diferenciados e complexos (Costa, 2003), para além dos desafios que lhes competem, enquanto professores no alcance do sucesso dos alunos.  
  
Apesar de o conflito ser comum entre todos os intervenientes da comunidade escolar, é mais frequente entre os alunos.  

Por conseguinte, os episódios de conflito podem ser entendidos através de três estádios (Nascimento, 2003):  
  
1. A emergência do conflito (inclui o tópico e o início do conflito) – consiste no ato que causa o conflito, o contexto ou a atividade que está em curso quando este ocorre e o elemento humano que atua como seu instigador. As causas do conflito podem ser variadas, como (Deutch, 1973, citado por Johnson & Johnson, 1996a, citado por Nascimento, 2003):  

•       Controle de recursos;  
•       Diferenças nas preferências;  
•       Diferenças nos valores e crenças;

•       Diferenças nos objetivos face à relação.
  
2.  O processo do conflito (inclui a intensidade e a resolução do conflito) – está relacionado com a reação ou comportamento que é reproduzido como resposta ao conflito e à sua resolução. Nesta dimensão devem ser considerados os seguintes fatores (Raffaelli, 1997, citado por Nascimento, 2003):  
  
        A duração do conflito; 
        A trajetória do conflito;  
        A resposta emocional ao conflito;  
        As estratégias de resolução de conflitos.  
  
Na tentativa da resolução de conflitos, os alunos usam um ou mais dos seguintes procedimentos (Johnson & Johnson, 1996a, citado por Nascimento, 2003):  
  
        Pedido ao professor para que intervenha;  
     Tentativa de vencer a situação conflituosa, forçando a outra parte a abdicar da sua posição;  
    Abandono da situação e distanciamento em relação ao interlocutor, deixando o conflito por resolver ou em situação de impasse.  
  
Alguns autores (Deutsch & Coleman, 2000, citado por Nascimento, 2003), referem seis novas dimensões que caracterizam as respostas que os alunos manifestam face ao conflito:  

1.      Evitamento vs envolvimento excessivo com o conflito;  
2.      Negociação difícil vs negociação fácil;  
3.      Orientação por regras vs orientação por preferências;  
4.      Resposta racional vs resposta emocional;  
5.      Escalada de conflitos vs redução dos conflitos;  
6.      Revelação compulsiva de informação vs ocultação compulsiva de informação.  
  
3. O resultado do conflito (consequências) – diz respeito às consequências finais do conflito, que podem compreender na rutura ou na tentativa de restabelecimento da relação.  
  
Nesta terceira fase, a resolução do conflito é vista como uma oportunidade para desenvolver competências relacionais mais sofisticadas, se a díade em conflito procurar restaurar a relação, através da negociação e reconciliação (Nascimento, 2003).  

A resolução de conflitos entre os alunos requer, por parte dos professores e da comunidade escolar em geral, uma intervenção eficaz, no sentido de antecipar situações problemáticas.  
  
Contudo, o conflito poderá ter um efeito positivo, considerando que se pode tornar numa experiência de crescimento e desenvolvimento dos alunos e na relação que estabelecem com os seus pares e com a escola.  

Nascimento (2003), defende que para a resolução do conflito não se devem aplicar medidas de penalização aos alunos, mas sim transformar estes incidentes críticos num projeto de formação pessoal e social dos alunos. A autora sublinha “Interessa, pois, perspetivar o conflito como uma variável relacional, inerente à interação humana, que, embora, no imediato, possa ter um efeito disruptivo a nível das relações interpessoais e possa até afetar negativamente o clima sócio-afetivo da turma ou da escola, se reveste de funcionalidade psicológica. Significa isso, que o conflito é uma condição importante do desenvolvimento social dos indivíduos, porquanto as exigências cognitivas e afectivo-emocionais que lhes coloca, funcionam como um estímulo à diferenciação dos processos de funcionamento interpessoal e, por conseguinte, promovem as competências sócio-cognitivas e de gestão emocional que tornam o individuo mais capaz de estabelecer relações positivas com os outros”.   

Apresentando a escola um contexto ideal para a gestão dos conflitos, importa transmitir algumas modalidades de intervenção que poderão promover as competências dos professores e alunos, no que respeita à gestão construtiva dos conflitos.  
  
Os programas de resolução de conflitos em contexto escolar podem enquadrar numa das seguintes categorias de abordagens (Osopow, 1991, citado por Nascimento, 2003):
  
1. Orientadas para as competências – os alunos são ensinados a desenvolver competências sociais e interpessoais, indispensáveis para a resolução construtiva dos conflitos. Consistem em duas subcategorias:  
  
  Os que se baseiam em curricula específicos – incorporando princípios e competências de resolução de conflitos nos programas educativos;  
      Programas de mediação entre pares – através de uma metodologia que acentua a ideia de autorresponsabilização e de autorregulação, partindo do pressuposto de que quanto mais alunos assumirem a responsabilidade pela regulação do seu e do comportamento dos seus pares, mais autónomos e socialmente competentes eles se tornam.   
  
2.   Academicamente orientadas - os alunos são treinados a desenvolver o pensamento crítico, através de procedimentos intelectuais e competências cognitivas.  
  
3.    Mudança estrutural – alterar a estrutura organizativa da escola no sentido de criar um contexto cooperativo de gestão de conflitos.  

Mediação entre Pares
De entre todas as modalidades de intervenção apresentadas, a Mediação entre Pares revela-se como uma estratégia eficaz na resolução dos conflitos que pode ser aplicada em contexto escolar.

Trata-se de um método de gestão/resolução de conflitos na escola, praticado, desde a década 80, nos Estados Unidos, que destaca a importância da aprendizagem, através da experiência, uma vez que possibilita o contacto quotidiano dos alunos com situações interpessoais problemáticas que são desafiantes para si, em termos das exigências cognitivas e emocionais que lhes colocam.   
  
Em Portugal, a Universidade Aberta foi pioneira na disseminação da implementação deste método, nomeadamente, através de um projeto-piloto, designado por GESPOSIT e coordenado pela Professora Lídia Grave-Resendes.  
  
O seu principal objetivo “consiste em utilizar o próprio conflito e proporcionar, através da sua identificação da análise crítica e da comunicação eficaz, aos alunos soluções numa perspetiva de ganhador-ganhador e não de ganhador-perdedor” (Grave-Resendes, 2004).  
  
A mediação é concretizada num ambiente confidencial e realizada por um terceiro (mediador) que ajuda os colegas envolvidos no conflito (litigantes) “a exporem os seus próprios pontos de vista e a encontrarem a solução para o conflito”, a fim de chegarem a um acordo comum (Grave-Resendes, 2004).  
  
De acordo com Grave-Resendes (2004), para a implementação do programa de Mediação entre Pares é fundamental que a escola esteja recetiva à aplicação deste método.  
  
O programa tem como principais objetivos (Nascimento, 2003):  
  
      Aumentar a comunicação entre toda a comunidade escolar;  
      Reduzir a violência, o vandalismo escolar e o número de suspensões;  
     Encorajar os alunos a resolver os seus próprios problemas, por meio do desenvolvimento de competências de escuta, pensamento critico, e de resolução de problemas;  
      Ensinar formas de resolução pacífica;  
      Promover o interesse dos alunos nas questões de resolução de conflitos.  
  
O processo de implementação passa pelas seguintes fases:  
  
1.      Sensibilizar a comunidade educativa;  
2.      Formar os professores voluntários;  
3.      Abertura do concurso para mediadores para os alunos interessados;  
4.      Selecionar os mediadores;  
5.      Formar os alunos mediadores;  
6.      Constituir os mediadores entre pares;  
7.      Abertura do gabinete de mediação;  
8.      Acompanhamento da mediação (supervisão);
9.      Partilha de informação/resultados.  

A Mediação entre Pares tem numerosas vantagens, entre as quais são destacadas (Nascimento, 2003):    


·       Os alunos envolvidos adquirem as mesmas competências dos mediadores, e aprendem com a sua experiência, que os conflitos podem ser resolvidos de forma não violenta; 

·       Os alunos tornam-se capazes de abandonar formas obsoletas de pensamento e passam a raciocinar de forma mais criativa e mais complexa acerca do conflito e de encontrar para ele soluções mais construtivas;

·    Os alunos que aprendem a negociar e a mediar o conflito de terceiros têm uma vantagem desenvolvimental sobre os que não fazem essa aprendizagem;

·       Os alunos que aprendem as competências de negociação adquirem, em regime de role-taking, competências diplomáticas que podem ser usadas, em outros contextos, para além da sala de aula;

·      Os alunos não sentem que a obediência a certos padrões sociais de comportamento põe em causa a sua identificação com o grupo de pares já que estes últimos são a fonte principal de moldagem e de feedback corretivo.


Referências

Costa, Maria Emília (2003). Gestão de Conflitos na Escola . Lisboa: Universidade Aberta, ISBN 972674-369-9 - pág 195 a 290 
 
Graves-Resendes, Lídia (2004). “ O Direito à educação e a Educação dos Direitos”, in Educação e Direitos Humanos, CNE   

Nascimento, I. (2003). “A dimensão interpessoal do conflito na escola”   







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